Velho do Farol

Porque sim.

Velho do Farol

22 de novembro de 2005

Net-Matrix

Morpheus: A Microsoft é nosso inimigo, Firefox. Mas quando estamos na internet... dê uma olhada em volta. O que você vê? Homens de negócio, professores, advogados, policiais. As mesmas pessoas que estamos tentando salvar. Mas até que o façamos, estas pessoas ainda são usuários do Internet Explorer. Você precisa entender: a maioria dessas pessoas não está preparada para mudar para um navegador que não vem incluso em suas máquinas quando eles a trazem para casa do Infoshopping e inserem o CD de instalação do UOL. E muitas delas estão tão inertes, tão desesperançosamente dependentes da Microsoft que elas lutarão para protegê-la. Você está me ouvindo, Firefox? Ou está olhando para a mulher no site pornô?

Firefox: Eu estava...

Morpheus: Olhe de novo.

(a mulher se transforma em Bill Gates)

Morpheus: Congele!

Firefox: O que é isso?

Morpheus: Padrões proprietários do Internet Explorer. Isso significa que qualquer um que não tenhamos convertido é público em potencial para sites que só funcionam no Internet Explorer. Na internet, você vê isso a toda hora. Nós sobrevivemos por sermos compatíveis com padrões, por lutarmos por compatibilidade. Mas estes falsos "padrões" são os porteiros.

Firefox: ...

Morpheus: Não vou mentir para você, Firefox. Toda companhia ou produto que enfrentou a Microsoft de frente foi aniquilado ou comprado. Mas onde eles falharam, você será bem-sucedido.

Firefox: Por quê?

Morpheus: Eu vi a Microsoft esmagar a Netscape com as próprias mãos. Eu vi homens inventaram inovações fantásticas apenas para perceber que elas são incompatíveis ou já foram incluídas na próxima versão do Windows. Mas os programas da Microsoft ainda são baseados em projetos fechados de pequenos grupos internos e com decisões feitas por marketeiros. Por causa disso, eles nunca serão tão seguros ou funcionais quanto você poderá ser.

Firefox: O que você está querendo me dizer? Que posso bloquear pop-ups?

Morpheus: Estou tentando dizer... que quando você estiver pronto, não precisará.

* * * * * * * *

Saia da Matrix. Tome a pílula vermelha.

(texto de autoria de um colega da U-Br)

por Marcus Pessoa, às 20:06 -

18 de novembro de 2005

Astrólogo não, jornalista

Olavo de Carvalho e seus seguidores na direita blogueira não têm importância alguma no debate nacional; escrevem coisas tão absurdas que, quando me ocupo deles, é mais por diversão. Afinal, não é divertido ver gente acreditando que o comunismo ainda existe como movimento forte e organizado? Ou que o Brasil é uma ditadura comunista, nesse exato momento?

Mas convém não perder de vista essa marcha da insensatez, pois ela avança. No Natal passado, um primo meu, que considero inteligente e lê muito, defendeu na mesa de jantar essa tese do Brasil comunista. Até minhas tias, carolas e anti-petistas, acharam ridículo; mas é da natureza dessa neo-direita achar que enxergam além de 99% da humanidade.

Reinaldo AzevedoEsse neo-conservadorismo é forte nos Estados Unidos, e a direita tenta importar para o Brasil a agenda de lá (com mil juras de amor a George W. Bush).

Com o ibope do Olavo cada vez mais baixo, cresce o nome de alguém bem mais preparado que o astrólogo carioca pra liderar a direita: Reinaldo Azevedo, editor da revista Primeira Leitura.

O Rafael Galvão já abordou o assunto num post antigo. Meu irmão lia bastante o site da revista, que considerava razoavelmente isento, mas notou que, após a passagem de José Serra para o segundo turno das eleições de 2002, o site deu uma guinada total pró-PSDB e anti-PT. Houve depois uma mudança ainda mais radical, e o que temos hoje é o citado Reinaldo Azevedo defendendo indiretamente a abstinência sexual como método de combate à gravidez na adolescência.

O Smart Shade of Blue tem feito o media watching dessa neo-direita, o que tem deixado quase intransitáveis suas caixas de comentários, de tantos representantes da dita cuja que vão lá esculachá-lo.

Mais uma vez eu me pergunto se vale a pena dar atenção a essa gente. Afinal, dizer que o Estado não deveria distribuir camisinhas gratuitamente é coisa de besta quadrada, né? No entanto, pelo seu verniz intelectual, pela sua identificação (mesmo que totalmente fora do contexto) com o liberalismo, Reinaldo Azevedo é considerado alguém instigante, que investe contra o "consenso politicamente correto" da mídia.

Disse eu uma vez a um amigo liberal: de que adiantam belos princípios, se falta o bom senso? Ele achava que não cabia ao Estado obrigar os motoristas a usar cintos de segurança, e "se alguns morrem por burrice o problema é deles". Típico. O primado da consciência individual é um dogma de tal importância que ignoram deliberadamente os problemas reais.

R.A. até tem razão quando critica os entrevistadores de Seu Jorge no Roda Viva, que quiseram formatá-lo num papel de "vítima do sistema". Mas o acerto inicial extrapola, e muito, os limites do bom-senso, quando passa a investir raivosamente contra qualquer tipo de humanitarismo, dizendo inclusive que Seu Jorge felizmente não teve a "má sorte de cair nas teias de proteção de um padre Júlio Lancellotti".

Noves fora o Smart ter mostrado (na caixa de comentários desse post) que no caminho de Seu Jorge houve a presença de ONGs que levam cultura à gente da periferia, espanta que a direita, em nome da crítica ao tal "consenso", promova esse ataque genérico ao próprio ato de ajudar o semelhante.

R.A. cantou a pedra em outro artigo, criticando en passant o "humanismo capenga da década de 50, que ainda era pautado pelo comunismo". An-ham. Pelo jeito, o humanismo não é uma herança do Renascimento, um dos pilares da democracia e do pensamento moderno, mas apenas uma enganação das campanhas "pela paz" do século passado...

Dá pra levar a sério um cara desse?

por Marcus Pessoa, às 20:11 -

14 de novembro de 2005

Rapidinhas

Meu modem ADSL pifou, e estou por enquanto em conexão discada -- o que significa menos tempo conectado na net, menos comentários nos blogs amigos e menos novidades aqui. Além do mais, começa daqui a uns 10 dias a Pessoa Brazil Tour.

Eu e minha excelentíssima genitora passaremos um mês entre Recife, Fortaleza e São Paulo, recarregando as energias, e as atualizações serão beeem esporádicas. Por outro lado, é a oportunidade para conhecer pessoalmente leitores e amigos virtuais que morem em alguma das três cidades. Quem estiver disposto a aturar um chato que fala pelos cotovelos, por favor se manifeste nos comments ou por e-mail.

* * * * * * * *

Pesquisa Blogosfera BrasilO portal de blogs Verbeat, na minha opinião o melhor da net brasileira, está realizando uma pesquisa com blogueiros e leitores de blogs, tentando fazer uma radiografia dessa cidadezinha pequena e provinciana a que chamamos de "blogosfera". O questionário é bem interessante, e recomendo a todos que vão lá respondê-lo.

* * * * * * * *

"A moral, no final das contas, é a seguinte: a desigualdade é fato consumado, que vai se perpetuar não importa como. Quem quiser mudar o estado das coisas é com certeza um grande filho da puta hipócrita. Isso, é claro, partindo do pressuposto de que absolutamente nada mudou desde a época em que havia escravidão, e que não há variantes entre a população negra (e branca) norte-americana, o que por si só já é uma colocação absurda. Anos e anos de conquistas efetivas em termos de direitos civis, com conseqüências práticas, são totalmente ignorados. Afinal, na Larsvontrierlândia, isso é tudo coisa de gente hipócrita, que só serve para manter um discurso velado de dominação".

Filme*log mete o pau em Manderlay, de Lars Von Trier, criticando o que considerou primarismo político no filme.

* * * * * * * *

"80% dos spams vêm de computadores hackeados. O Firefox é mais seguro e pode impedir seu computador de ser hackeado também. Faça isso pelas crianças! (ou seja: reduzir o spam do Viagra pode reduzir o número total de crianças)".

Essas e outras explicações dos "benefícios" de usar o Firefox estão no hilariante site Kill Bill's Browser.

(via Tableless)

* * * * * * * *

O blog alto volta já vinha se destacando há tempos pela combinação minimalista de texto e imagem (microcomentários + belas montagens produzidas pelo autor). O que chama atenção agora é a série Wwork (13 posts até o momento), que é genial.

por Marcus Pessoa, às 04:21 -

11 de novembro de 2005

Para o alto e avante

Super-Homem e Mulher MaravilhaEntrou no ar ontem o site oficial de Superman Returns, que tem o potencial de ser o melhor filme de super-heróis já feito. Não tem muita coisa lá (o primeiro teaser trailer sai mês que vem, no lançamento de Harry Potter e o Cálice de Fogo), mas eu já decorei o meu desktop com Brandon Routh na fortaleza da solidão.

Tá. O Super, depois da desconstrução promovida por Frank Miller, ficou alguém difícil de gostar. Bebezão politicamente correto na fachada, e capacho dos falcões da direita por trás dos panos. Um fraco de espírito.

Numa passagem de Dark Knight 2, sua filha com a Mulher Maravilha (!) enfrenta Brainiac, que acha que ela, por força da descendência, não vai atirar para matar. Ao que ela responde: "Eu não sou do Kansas, maldito. Eu sou uma amazona!". E vaporiza o robozão com um raio de calor.

Noves fora a intriga da oposição, o fato é que o Homem de Aço tem um carisma difícil de superar. Lembram do diálogo entre Bill e Kiddo no final de Kill Bill 2? Magistral. Quando criança eu, como milhões, sonhava em ser o Super-Homem. Eu queria resolver os problemas da Terra.

O azulão é coadjuvante num disco que está indo velozmente para o topo das listas de melhores do ano da imprensa especializada. Illinois é a segunda etapa do projeto maluco de Sufjan Stevens, que quer fazer 50 discos (!) retratando todos os estados americanos.

O disco é maravilhoso, uma viagem pela alma rural dos Estados Unidos, com banjo, piano, gaita, corinhos lindos, sem deixar de ser rock. Desde The Hour of Bewilderbeast, de Badly Drawn Boy, eu não escutava um disco acústico tão vibrante e solar como esse.

Metropolis, diz a lenda, fica em Illinois, e Stevens lembrou de Superman nessa linda canção, e até o colocou na capa do disco. Clique para ouvir.

The Man of Metropolis Steals Our Hearts
Sufjan Stevens (mirror)

Trouble falls in my home
Troubled man, troubled stone
Turn a mountain of lies
Turn a card for my life
Man of Steel, Man of Heart
Tame our ways, if we start
To devise something more
Something half ways

Only a steel man came to recover
If he had run from gold, carry over
We celebrate our sense of each other
We have a lot to give one another

I took a bus to the lake
Saw the monument face
Yellow tides, golden eyes
Red and white, red and wise
Raise the flag, summer home
Parted hair, part unknown
If I knew what I read
I'll send it half ways

Only a real man can be a lover
If he had hands to lend us all over
We celebrate our sense of each other
We have a lot to give one another

Took my bags, Illinois
Dreamt the lake took my boy
Man of Steel, Man of Heart
Turn your ear to my part
There are things you have said
Raise the boat, and raise the dead
If you take us away
Still can we say:

Only a steel man can be a lover
If he had hands to tremble all over
We celebrate our sense of each other
We have a lot to give one another

por Marcus Pessoa, às 11:03 -

10 de novembro de 2005

How to disappear completely



A Islândia só existe no mapa existencial do mundo por causa da Björk. Mas, em vista da visível decadência do trabalho da duendezinha, talvez seja melhor lembrar de lá como a terra do Sigur Rós.

Alguém da imprensa já comentou, jocosamente, que a música deles é "trilha sonora pra esperar disco voador". O tiro saiu pela culatra, pois é uma definição perfeita! É música pra esquecer do mundo, pra fingir que não estamos na situação em que estamos. Pra sumir da realidade e nunca mais ser encontrado.

Tá, eles fazem um tipo de reprocessamento do rock progressivo e blá blá blá, como outras grandes bandas atuais (Mogwai, Godspeed You Back Emperor! e até o Radiohead). Mas a menor vontade que dá ao ouvi-los é fazer crítica musical. Só dá pra pensar em ser feliz. Música só serve pra isso.

Saiu em setembro o quarto disco, Takk, que em islandês quer dizer "obrigado". Arthur Dapieve disse a respeito, acertadamente: "obrigado digo eu". Aliás, eu sempre penso nisso quando estou num show e o artista agradece o carinho do público. Entendo ele ficar feliz de sua obra estar tocando as pessoas, mas o público tem muito mais razões pra agradecer.

Um dos destaques dessa leva é Hoppípolla (clique para ouvir; mirror aqui), mas também me impressionou o maravilhoso vídeo da faixa de trabalho, Glósóli, cujas imagens ilustram este post.

A banda só lançou quatro videoclipes em toda a carreira, mas deixam comendo poeira as obras completas de quase todos os artistas que tocam na MTV. Não são videozinhos com edição picotada, e sim, filmes de atmosfera onírica e câmera lenta, porque a música deles pede isso.

Como a reafirmar que não têm nada a ver com esse mundo, são estrelados apenas por crianças, ou, no caso de Svefn-G-Englar, por bailarinos com síndrome de Down. O vídeo de Vidrar Vel Til Loftarasa faz mais, metaforicamente, pela aceitação da homoafetividade do que todas as paradas gays do mundo.

É dificíl vê-los na TV brasileira (novidade...), mas dá pra encontrar os quatro vídeos no eMule. Como nem todo mundo tem banda larga, coloquei nesse link o vídeo novo. O arquivo tem 16 MB, e o link funcionará por uma semana ou enquanto "durarem os estoques" (25 downloads).

por Marcus Pessoa, às 16:04 -

8 de novembro de 2005

Debaixo da pele

Neil e BrianMeu amigo filme*log é um rato de sala de cinema, daqueles que entra em imersão na Mostra de São Paulo. Entre os filmes que destacou este ano, além do festejado Good Night and Good Luck, de George Clooney, está esse pequeno filme independente americano, Mysterious Skin.

O tema é indigesto: Neil e Brian são dois rapazes que mal se conhecem, mas têm suas vidas unidas por um episódio da infância, quando foram abusados pelo treinador do time de beisebol da escola. Enquanto Brian bloqueia sua lembrança do fato, Neil, que se descobre homossexual, cria em sua mente um quadro risonho das semanas em que "namorou" com seu abusador.

O filme é corajoso quando aborda a pedofilia numa pespectiva não-histérica. Ao invés de uma mera denúncia, vemos uma história complexa de como o abuso pode transformar a vida de alguém.

Não poderiam existir jovens mais diferentes do que estes: Brian é frágil, amamãezado, não bebe, não namora, e transforma seu trauma numa bizarra história de abdução por alienígenas. Neil cai na vida cedo, torna-se michê e deseja encontrar um homem que o "ame" tanto quanto o treinador. Em comum, a dificuldade de superar o episódio, e os destinos cruzados pela obsessão de Brian em encontrar Neil, que poderá ajudar a explicar seus pesadelos e desmaios.

É um filme muito tocante, com personagens excepcionalmente bem construídos, e não tem aqueles truquezinhos de roteiro, sabe? Aquela história toda amarradinha, onde cada frase proferida vai explicar algo mais tarde? Há apenas a vida seguindo, com a parcimônia natural do mundo real, onde as coisas se resolvem as poucos, e não ficamos ansiosos pelo desfecho -- e não há reviravoltas, tragédias inverossímeis, nem falsa redenção.

De quantos filmes recentes isso pode ser dito? E que nos emocionem, também? Consigo lembrar, agora, apenas de Thirteen, que por coincidência também fala de sexo e adolescência nos EUA de hoje. O cinema está numa fase estranha -- mesmo os filmes "alternativos" parecem às vezes apenas um jogo de adivinhação.

A destacar, também, o restante do elenco, uniformemente bom; a eloqüente variação cromática entre os dois pólos do filme; e a trilha sonora do cocteau twin Robin Guthrie, temperada com faixas de algumas de minhas bandas preferidas (Slowdive, os próprios Cocteau Twins, Sigur Rós).

Há que se avisar que não é um filme pra qualquer público. A atmosfera cândida das cenas de pedofilia pode chocar; há cenas de sexo (não explícito) bem pouco ortodoxas, e também uma seqüência muito crua de violência física e psicológica. O filme provavelmente será rotulado de "filme gay", o que é uma pena, pois passa longe dos clichês.

Só houve lançamento em DVD nos Estados Unidos, mas quem tem conexão rápida e um cliente BitTorrent pode baixar o arquivo de ótima qualidade que está circulando na net, aqui ou aqui. Se você prefere eMule, o link é esse. Legendas aqui (em português lusitano).

por Marcus Pessoa, às 11:36 -

7 de novembro de 2005

Stay untuned

A propósito desse post-pegadinha do Inagaki, que deixou todo mundo preocupado com o possível fim do Pensar Enlouquece, eu fiz o seguinte comentário:

Eu já nem me incomodo com essa história de "férias" ou "blogs mortos-vivos". Eu já vivo permanentemente de férias, às vezes passo três semanas pra colocar um post novo no Velho do Farol. Os comentadores lá, pressionando, e eu fazendo cara de "nem te ligo"...

Lawrence FerlinghettiComo este blogueiro gasta mais tempo comentando nos blogs dos amigos do que escrevendo aqui, todo mundo já se acostumou com as lacunas, né? Não se preocupem, basta esperar um pouco... sentados, claro.

Pois eis que o velho poeta beat Lawrence Ferlinghetti disse aquilo que eu queria dizer, em entrevista à revista do New York Times:

NYT - Você está dizendo que o termo literarians se refere aos leitores de livros, em oposição a pessoas que preferem sua cultura plugada numa tomada?

Ferlinghetti - Sim. Nos anos 60 havia um famoso slogan, "Esteja aqui agora" (Be Here Now), que virou título de um best-seller do Ram Dass. Hoje, com os celulares, o fax, a internet, a coisa toda, a frase correta é "Esteja em algum outro lugar agora".

(via br.br101.org)

por Marcus Pessoa, às 19:47 -

2 de novembro de 2005

Finados

Sem metafísica, por favor: às vezes quero idéias simples que definam perfeitamente as coisas. A singularidade da espécie humana, por exemplo. Para além de seu cérebro avantajado, polegar opositor, "alma imortal" e quetais, eu queria dizer: o homem é isso e pronto.

De "bípede implume" a "bípede inviável", foram muitas as tentativas. Dizem que o homem é o único animal que ri. Mas uma idéia me fascina: o homem é um animal que lembra. Não é o único, mas eu queria que essa fosse nossa característica definidora.

Penso nisso porque é Dia dos Mortos. Não existe função mais nobre da memória do que lembrar daqueles que já foram. Que não podem mais chamar nossa atenção. Cuja "presença" em nada nos é "útil".

Milan Kundera escreve em seu romance A Imortalidade que esta pode ser conseguida de duas formas. Os mortos vivem na lembrança dos que os conheceram, o que é a pequena imortalidade. Já uma parte deles transcende, vive na lembrança dos que não os conheceram: é a Grande Imortalidade, privilégio de artistas e homens de Estado. A memória permite uma pequena vitória sobre o inexorável.

Existe no centro de Belém um lindo cemitério, o Soledade. Quando passo em frente aos mausoléus, minha alma fica pequenina. São obras finamente entalhadas e que custaram muito caro. Fico pensando no medo que reside nos corações humanos. Eu tenho medo de não lembrar, então gasto meu suor para construir algo que me afaste do grande perigo, a impersistência da memória.

Se quiser ensinar a meu filho sobre nossa característica definidora, apenas o levarei para passear no Soledade. Vê? Entende como os homens amam tanto seus semelhantes, a ponto de construir grandes obras para nunca esquecê-los?

O irônico é que nunca visitei o túmulo de meu pai. Eu o perdi muito cedo, e isso de que falo não existe na mente de uma criança de nove anos. Nunca fui, e talvez nunca vá -- não sinto falta, não vejo problema em ter apenas as lembranças.

Meu pai morreu muito cedo, aos 38 anos, de cirrose hepática. Era alcóolatra em estágio terminal. Fora isso, um grande homem, uma pessoa rara para quem todos só têm boas palavras.

Eu já sabia, claro, o que era a morte, mas nunca imaginei que ela pudesse chegar para alguém tão jovem. Minha tia chegou comigo e disse que "papai do céu levou seu pai". Eu achei estúpido da parte dela dizer isso; eu não era nenhum retardado para que precisassem dourar a pílula. Mas fiquei calado; certas coisas dão muito trabalho de explicar.

Eu não chorei, nem mesmo fiquei triste. O que tive foi um transe, uma ânsia de olhar, ver todos ao meu redor, o modo como reagiam a isso, o que diziam dele. Ver minha mãe chegando, muito chorosa, amparada por todos. A vida parecia um filme.

A falta, a enorme falta, a imensamente amarga e triste falta, eu fui sentir uns três dias depois. E nunca deixei de sentir, até hoje.

Estávamos os três, eu e meus irmãos, no velório dele. Lembro dessa cena como se fosse hoje. Chegamos, levados pelos tios, e minha mãe nos recebeu na porta do salão; em seguida nos levou até o caixão, onde papai jazia com o rosto coberto. Mamãe retirou o lenço e disse: "este é seu pai, e ele se foi para sempre".

Um dia desses, conversando com ela, relatei a história, e percebi o júbilo em seu olhar. Era seu objetivo: que lembrássemos, que soubéssemos para o resto da vida o que era, na real, ver papai ir embora e nunca mais voltar.

Temos medo da morte porque a modernidade seqüestrou-a de nós. Hoje todos morrem em hospitais, cujo karma é pesado demais. Mas eu tive sorte. Eu pude, em outro episódio, me reconciliar com a idéia da morte como algo natural, como a passagem de um ciclo.

Eu devia ter uns quinze anos e mamãe nos avisa: minha avó (mãe do meu pai) estava muito doente, nas últimas. Fomos imediatamente para a casa dela, e lá estava a velhinha, sentada mas inconsciente, amparada por um médico. Mamãe sentou-se ao lado dela e pegou sua mão; minha avó teve um espasmo, não sei se involuntário ou porque sentiu a singeleza do toque.

Todos os parentes estavam na casa, chorando e rezando. Eu fiquei com eles, e aos poucos tudo fez sentido: a idade avançada da vovó, sua vida sofrida mas digna, seus filhos criados como pessoas de bem. Ela estava indo, mas tinha junto de si todos os que a amavam, na casa onde viveu décadas. Existe forma mais tranqüila de morrer?

Desde esse dia não tenho mais medo da morte.

Um bom dia de Finados a todos. E leiam esse post antigo, onde Sandman reflete sobre as mesmas coisas.

por Marcus Pessoa, às 06:34 -

Voltar para a página inicial