6 de outubro de 2006
O lírio mimoso
Não esperem concisão ou coerência. Não estou falando de coisas à toa, classificáveis, mas de fragmentos do caos original. De sensações, acontecimentos, pessoas, imagens, lembranças, tudo misturado.
Domingo é o Círio de Nazaré. E acredite, se você não mora em Belém, ou não veio aqui pra sentir na real, ou ficou só na sacada do hotel vendo as pessoas passarem, você não sabe de nada.
Antes o Jornal Nacional falava da "maior festa religiosa do norte". Agora não dizem mais o que é. Não sabem, ou não querem admitir. Que essa é a maior festa religiosa do mundo. Fora Ramadã em Meca e coisa e tal. Mas ela se passa nesse enclave em plena selva. Esse lugar que ninguém entende. Nem nós, que moramos aqui.
A gente não chama Nossa Senhora de Nazaré. A gente chama de Nazaré. Ou Naza. Ou Nazica, até. A gente trata como uma tia querida, ou como a mãe mesmo, se a de verdade morreu. Foi achada no rio, você acredita? Mais uma das historinhas de santas caídas no rio, achadas por pescadores. O enredo é o mesmo. Ela voltava sempre. Sei lá, aqui é calor, vai ver ela queria se refrescar.
Belém não é Belém, é Santa Maria de Belém do Grão Pará. E o Vicente Cecim encurta, põe Santa Maria do Grão. Num lugar mítico que não chama Amazônia, chama Andara. Eles têm o Grande Sertão, nós temos Andara. Um lugar onde você se perde e nunca mais é encontrado. Onde você deixa sua alma passear, e ela foge de você, e você nem percebe.
Tem água do rio em nossas veias. A gente não acredita em tanta água. Não é o mar. É um mar correndo no meio da nossa vida. É a selva tragando coisas e pessoas. Vocês tiveram a prova um dia desses.
Rewind. O Valerius Ensemble toca duas peças difíceis de Schubert. Ninguém gosta muito, só eu e uns poucos. As palmas não são entusiasmadas. Mas todo mundo se acha europeu. O teatro é europeu. O art noveau do hall é europeu. O neoclássico da fachada é europeu também. Mas a gente sai, e a praça tá cheia de gente acampada no Grito da Terra. Esse pessoal grita e tem razão. E o enclave grita junto com eles. Pois a gente é europeu sim, mas a gente também foi largado no meio do nada pelos canalhas. A Transa Amazônica é um cemitério compriiido.
E a Naza galvaniza essas pessoas tão diferentes, interrompe a luta de classes durante duas semanas. O catolicismo é pelego mesmo, mas quem se importa? Santos são uma coisa legal. O povinho não acredita direito que Deus olha pra cada um eles. Não se acha tão importante assim. Pede ajuda aos embaixadores. Jorge era um soldado, Benedito um cozinheiro, Naza uma menina pobre. O povinho acha que eles vão entender. E pede pra eles. E quando eles estão pedindo pra Naza, todos juntos, dá um nó na garganta. E esse nó nunca vai desatar.
Vocês não sabem. Não é a pequena cidade tragada pelo turbilhão. Não é a grande cidade apenas tendo algo sobre o que falar naquele dia. É a grande cidade sumindo, não dando pra ver o chão, é gente gente gente. Não precisa ser católico, não precisa acreditar em Deus. Mesmo os crentes vão lá, escondidos do pastor. A Naza é boa e não pergunta.
Hoje e amanhã são os melhores dias. Todo mundo sai pra ver a noite, pobre, rico, brega, cult. Famílias andam a pé, tem um monte de coisa pra ver. Tem os brinquedos de miriti, tem o arraial, tem os fogos, tem mil procissões que fazem a santa ir pra lá e pra cá. Ninguém tem medo da morte, de assalto, de acidente, a Naza cancela essas coisas durante alguns dias. Liberta o povo que vive preso em sua própria casa. As ruas voltam a ser de propriedade das pessoas e não das coisas.
Muito antes de Paradas Gay já tinha a Festa da Chiquita Bacana. O Bar do Parque nunca fecha, a não ser pra saudar a Naza. E antes de fechar os viados dão a maior festa. A Naza liberta eles também. E na festa vai todo mundo, homem, mulher, viado, sapatão. Tem carimbó e tal, não é macumba pra turista, o pessoal gosta mesmo. E tem o Viado de Ouro, o oscar da bichice. Que é entregue pra um viado com relevantes serviços prestados. O Edmilson Rodrigues, quando era prefeito, entregou o prêmio pessoalmente. Filho de pastor protestante, não fez mediazinha babaca, mas um discurso apaixonado em defesa dos viados.
A Chiquita é legal porque todo mundo vai. Tá encalacrado com trabalho, tá deprê, nunca mais saiu nem encontrou os amigos de verdade? Não esquenta, vai na Chiquita que encontra. É só ir lá do lado, na escadaria do teatro, tá todo mundo lá. No dia em que o Paulo Chaves quis interditar, foi motim. Ninguém aceita burguês elitista dando ordens no povo.
Hoje é sexta, tem Auto do Círio, tem samba junto com reza, e não são coisas diferentes. A gente faz o religare por nossa conta, somos gregos também, dóricas são as colunas da Praça da República, pagã e cristã sem neuras a nossa fé. O auto é daqui a pouco e eu não vou ficar mais escrevendo na internet. Vou ser feliz e já volto. Que a Naza abençoe a todos nós.
por Marcus Pessoa, às 15:26 -