Velho do Farol

Porque sim.

Velho do Farol

13 de agosto de 2004

Post sem pé nem cabeça

Por que eu demoro pra responder os comentários que deixam aqui no blog? Por que eu deixo de postar por um mês, sendo que passo pelo menos cinco horas por dia na net? Por que às vezes, quando alguém que eu nem conheço linka pra cá, sequer deixo um agradecimento em resposta? Por que eu nunca consigo escrever sobre as coisas que realmente me interessam? Por que todos os textos são longos e cheios de clichês? Por que a letra do template é tão grande que cada texto sempre parece um jornal?

Eu não sei por que, mas isto me lembra muito isso aqui:

"Tenho também meditado sobre a [minha] casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. Não há uma cisterna, um pátio, um bebedouro, um pesebre; são catorze (são infinitos) os pesebres, bebedouros, pátios, cisternas. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo.

(...) Um após outro caem sem que eu ensangüente as mãos. Onde caíram, ficam, e os cadáveres ajudam a distinguir uma galeria das outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles, na hora da morte, profetizou que um dia vai chegar meu redentor. Desde então a solidão não me magoa, porque sei que meu redentor vive e que por fim me levantará do pó. Se meu ouvido alcançasse todos os rumores do mundo, eu perceberia seus passos. Oxalá me leve para um lugar com menos galerias e menos portas. Como será meu redentor?"

E mais não cito, pois estragaria o melhor conto de Jorge Luís Borges. Acrescento apenas que quando me vêm algumas perguntas amontoadas, não me incomodo tanto, pois sei que meu redentor já pisa o mesmo chão que eu. Talvez eu o encontre breve; talvez demore ou eu nunca o veja; talvez eu já o tenha conhecido e não soube quem era. Mas ele já pisa o mesmo chão, e isso por enquanto é mais do que suficiente.

* * * * *

Borges põe acima um pedacinho do Livro de Jó, o que eu não notei de imediato (tremenda gafe de quem sempre gostou desse livro específico da Bíblia). Fui perceber quando vi as palavras num cartaz barato de um bar imundo. Parece perfeito para um êxtase religioso pós-moderno, não? Mas só deixou aquele aturdimento de olhar por cima de um muro e ver uma paisagem a perder de vista, sem ter como chegar a ela.

por Marcus Pessoa, às 05:06 -

10 de agosto de 2004

"Vote em mim!"

Calma, a campanha eleitoral não chegou (e nem chegará) a este espaço. O convite é para que o leitor compareça à votação do Troféu Santa Clara, iniciativa da Folha de S. Paulo que escolhe os piores da televisão brasileira.

Parêntese: nos últimos dez anos, fiquei sem TV em casa durante quase todo o tempo. Era maravilhoso ter apenas livros para vencer o tédio. Mas agora estou solteiro e voltei a morar com minha mãe, que comprou uma TV enorme e com ótima imagem. Todo mundo sabe que TV aberta é um lixo, mas eu sou um adicto em porcaria, e quase todos no fundo somos apenas insetos em volta da lâmpada. Fecha parêntese.

A votação do troféu vai até esta quinta feira, então não perca tempo, clique no link e vote. Eu já votei, e estava até um pouco decepcionado por ter sido tão pouco criativo nas escolhas. Entrevista falsa do PCC como o fiasco do ano? Muito óbvio. Eu Vi na TV como o pior programa entre todos? Muito justo, mas não seria notícia velha?

Não, não seria.

Tentando vencer a insônia, estava zapeando ainda agora e vi a Luciana Gimenez dando "entrevista" para o João Kleber. Ela fez o gênero "mulher de personalidade", amiga de todos e perseguida pela imprensa. Até aí nada demais, a não ser que, mesmo se eu fosse acreditar em tudo o que ela diz, ainda não entenderia como uma mulher tão "íntegra" e "inteligente" consegue fazer aqueles olhares bovinos enquanto patrocina espetáculos diários de baixaria em seu programa.

Mas isso é só outro parêntese. O que me deixou indignado, até enojado mesmo, foi uma inovação do famigerado teste de fidelidade, que veio logo a seguir. Depois de esquetes infames, onde homens supostamente comuns apareciam em cafajestadas com atrizes calipígias (ou mesmo travestis bem caracterizados), agora quem foi "testada" foi a mulher - ou seja, a namorada do basbaque que se dizia (como sempre) seguro de seu amor.

Bem, a essa altura qualquer pessoa de bom senso (ou seja, que não costuma assistir o programa) já sabe que esse quadro é a maior armação, pois nem o homem mais imbecil conseguiria ser tão canastra enquanto é paquerado por uma boazuda songamonga. Mas a brincadeira de inversão de gêneros passou de todos os limites do mau gosto.

Me diga, caro leitor: o que você sentiria ao ver uma mulher bonita, do tipo "normal", que poderia ser sua colega de escritório ou vizinha de andar, e comprometida, se entregar em cinco minutos à lábia de um bonitão que ela acabou de conhecer, numa suposta entrevista de emprego? Pensaria em algumas palavrinhas começadas com a letra P, não? Sim, é tudo teatrinho, e muita gente deve saber disso, mas as mulheres não ficam bem na foto, né?

A cafajestada masculina ainda pode ser levada na galhofa, já que o amante caliente só se queima mesmo com a suposta cara-metade. Podem me chamar de machista, antiquado, o que for, mas eu sou do tempo em que garotas precisavam de mais do que alguns músculos bem trabalhados e uma conversa mole para se entregarem a um estranho. De um tempo onde lugar de mulheres que diziam sim tão fácil era na zona (desculpem, não deu pra evitar).

Aliás, eu ainda acredito que esse tempo ainda não se foi. Acredito nisso, mesmo que me chamem de Polyanna. Ao abordar o tema de forma tão baixa, fingindo que a liberação sexual invalidou, se não os parâmetros éticos, pelo menos os estéticos (pois é algo muito feio de se ver), João Kleber consegue ser ainda pior do que sempre foi.

Vejam bem, eu não tenho nada contra o sexo sem compromisso e a libertinagem consciente e deliberada. O que eu acho um acinte é ouvir uma garota sendo chamada de "safada" e coisas piores ainda na TV, mesmo sendo tudo uma armação.

Por isso, eu ponho essa foto aí em cima, que parece implorar: "Vote em mim! Eu sou o maior canalha, a maior excrescência, o mais vil de todos os patetas vis de nossa TV-lixo!" Então, mais uma vez convido: vote no Troféu Santa Clara. Provavelmente não vai adiantar nada, mas pelo menos você consegue se acalmar um pouco de tanta indignação.

por Marcus Pessoa, às 02:08 -

9 de agosto de 2004

História romanesca

Não dava para não citar a história contada por Elio Gaspari neste domingo, sobre o conde Maurice Haritoff e suas duas esposas. Como o texto só ficará no ar até a terça dia 10 no site do Globo Online, vou publicá-lo na íntegra aqui:

* * * * *

O conde Haritoff, a rica Nicota e a negra Regina

Morreu no dia 25 de junho, na Santa Casa de Barra do Piraí, Iwann Haritoff. Tinha 92 anos, não deixou um centavo e levou consigo o testemunho de um curioso episódio da vulnerabilidade daquilo que se gosta de chamar de elite brasileira e da beleza da vida nesta terra.

Iwann foi filho do conde russo Maurice Haritoff, um dos rapazes dourados da corte de Napoleão III em Paris. O conde veio ao Brasil em 1866 acompanhando uma irmã que se casara na aristocracia cafeeira do Vale do Paraíba. No ano seguinte Maurice Haritoff casou-se com a sobrinha do comendador Joaquim de Souza Breves, que foi o homem mais rico do Brasil de todos os tempos. Juntou 52 fazendas e mais de cinco mil escravos. Haritoff tinha 25 anos e Ana Clara (Nicota), sua mulher, 17. Conversavam em francês.

Quando estourou a Guerra da Criméia, Haritoff alistou-se nas tropas russas. Retornou trazendo para a mulher um magnífico xale para noites de gala. O casal encantou o grão duque Alexandre em sua passagem pelo Brasil. O palácio em que viviam em Laranjeiras (no terreno onde hoje funciona a Escola José de Alencar) foi o salão da imperial granfinagem. Suas portas abriam-se às terças-feiras (“le Mardi de Mme. Haritoff”). Vestiam os criados como cossacos.

Maurice e Ana Clara não tiveram filhos. Ela morreu em 1894, aos 44 anos. Viveram aquilo que seria um conto de fadas europeu nos trópicos. A esse conto de fadas seguiu-se a História brasileira, bagunçada e bela.

Diz a lenda branca que Nicota morreu de desgosto, obrigada a conviver com o romance de Maurice com uma mucama. Precursora da Nega Fulô do poeta Jorge de Lima, a negra Regina nasceu escrava, em 1867.

Tendo sabido ser rico e conde, Haritoff soube empobrecer como um cavalheiro. Casou-se com Regina em 1906. Nessa época já tinham dois filhos: Boris e Alexis. Boris foi o único mulato pobre da nobreza russa. Existe uma fotografia de Regina com as duas crianças, usando um lindo vestido, provavelmente colhido no espólio de Nicota.

Iwann Haritoff sustentou-se como pequeno comerciante e biscateiro. Como um tio russo, perdia tudo nas cartas. Pouco falava da história de seu pai e chegava a duvidar de que fosse verdadeira. Enterraram-no em cova rasa, por não ter “parentes próximos”, apesar de o andar de cima nacional estar cheio de descendentes dos Breves.

Nascido na decadência do café, Iwann viveu o descaso que assombra o patrimônio histórico nacional. A Fazenda do Pinheiro, onde Ana Clara e Maurice Haritoff se conheceram, foi doada (repetindo, doada) ao governo federal. Hoje é vergonhosa ruína. A Universidade Federal Fluminense e o Ministério da Agricultura dividem a irresponsabilidade da destruição da casa-grande e das suas terras, invadidas por baixo por favelados e por cima por condomínios. A Igreja da Grama, onde os Breves planejaram descansar em criptas nobiliárquicas, foi saqueada. Levaram o sino, o assoalho e a escada do púlpito. Depois que a polícia varejou-a à procura de um corpo desaparecido (o da ricaça Dana de Teffé) os moradores foram transferidos para o cemitério de Barra do Piraí. A juventude do pedaço transformou a igreja num point sobrenatural. Dizem que Joaquim Breves anda por lá à noite, de japona. Há rapazes que se divertem deitando-se no jazigo do comendador.

Os ícones da Santa Rússia e os orixás do Vale do Paraíba imploram ao poeta Affonso Romano de Sant’ Anna que não abandone a história do conde Haritoff e suas duas mulheres. Explica-se: ele se interessou pela história e já acumula algumas dezenas de fotografias, cartas e documentos relacionados com a vida de Maurice, Nicota e Regina. Ainda não se comprometeu a escrever sobre o assunto. Trata-se de um caso raro de samba-enredo que nasceu pronto.

Enquanto o livro do poeta (ou o samba-enredo) não vem, deve-se ao advogado Aloysio Clemente Breves Beiler um persistente esforço de preservação da memória de sua família, mantendo um excelente sítio na internet. A história de Haritoff está neste endereço.

* * * * *

Essa história, embora verídica, parece tão romanesca, que me vieram à mente lembranças dos mestres russos de que eu gosto tanto: Dostoievski, Tolstoi, Turgueniev, etc.

Pode-se criticar muita coisa em Elio Gaspari, mas não dá pra negar que ele escreve narrativas deliciosas. Ainda não li os livros dele sobre a ditadura, mas desconfio que sejam o relato histórico mais bem escrito dos últimos tempos, pelo menos desde Chatô, do Fernando Morais.

PS: não pretendo explicar o sumiço de mais um mês (daria muito trabalho e seria inútil). Se a palavra "bipolar" faz sentido pra você, então não preciso dizer mais nada.

Update - O leitor Rômulo Marinho trouxe, na caixa de comentários, preciosas informações e/ou correções sobre o texto acima. Publiquei-as em um outro post aqui do Velho.

por Marcus Pessoa, às 01:00 -

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