Velho do Farol

Porque sim.

Velho do Farol

2 de novembro de 2005

Finados

Sem metafísica, por favor: às vezes quero idéias simples que definam perfeitamente as coisas. A singularidade da espécie humana, por exemplo. Para além de seu cérebro avantajado, polegar opositor, "alma imortal" e quetais, eu queria dizer: o homem é isso e pronto.

De "bípede implume" a "bípede inviável", foram muitas as tentativas. Dizem que o homem é o único animal que ri. Mas uma idéia me fascina: o homem é um animal que lembra. Não é o único, mas eu queria que essa fosse nossa característica definidora.

Penso nisso porque é Dia dos Mortos. Não existe função mais nobre da memória do que lembrar daqueles que já foram. Que não podem mais chamar nossa atenção. Cuja "presença" em nada nos é "útil".

Milan Kundera escreve em seu romance A Imortalidade que esta pode ser conseguida de duas formas. Os mortos vivem na lembrança dos que os conheceram, o que é a pequena imortalidade. Já uma parte deles transcende, vive na lembrança dos que não os conheceram: é a Grande Imortalidade, privilégio de artistas e homens de Estado. A memória permite uma pequena vitória sobre o inexorável.

Existe no centro de Belém um lindo cemitério, o Soledade. Quando passo em frente aos mausoléus, minha alma fica pequenina. São obras finamente entalhadas e que custaram muito caro. Fico pensando no medo que reside nos corações humanos. Eu tenho medo de não lembrar, então gasto meu suor para construir algo que me afaste do grande perigo, a impersistência da memória.

Se quiser ensinar a meu filho sobre nossa característica definidora, apenas o levarei para passear no Soledade. Vê? Entende como os homens amam tanto seus semelhantes, a ponto de construir grandes obras para nunca esquecê-los?

O irônico é que nunca visitei o túmulo de meu pai. Eu o perdi muito cedo, e isso de que falo não existe na mente de uma criança de nove anos. Nunca fui, e talvez nunca vá -- não sinto falta, não vejo problema em ter apenas as lembranças.

Meu pai morreu muito cedo, aos 38 anos, de cirrose hepática. Era alcóolatra em estágio terminal. Fora isso, um grande homem, uma pessoa rara para quem todos só têm boas palavras.

Eu já sabia, claro, o que era a morte, mas nunca imaginei que ela pudesse chegar para alguém tão jovem. Minha tia chegou comigo e disse que "papai do céu levou seu pai". Eu achei estúpido da parte dela dizer isso; eu não era nenhum retardado para que precisassem dourar a pílula. Mas fiquei calado; certas coisas dão muito trabalho de explicar.

Eu não chorei, nem mesmo fiquei triste. O que tive foi um transe, uma ânsia de olhar, ver todos ao meu redor, o modo como reagiam a isso, o que diziam dele. Ver minha mãe chegando, muito chorosa, amparada por todos. A vida parecia um filme.

A falta, a enorme falta, a imensamente amarga e triste falta, eu fui sentir uns três dias depois. E nunca deixei de sentir, até hoje.

Estávamos os três, eu e meus irmãos, no velório dele. Lembro dessa cena como se fosse hoje. Chegamos, levados pelos tios, e minha mãe nos recebeu na porta do salão; em seguida nos levou até o caixão, onde papai jazia com o rosto coberto. Mamãe retirou o lenço e disse: "este é seu pai, e ele se foi para sempre".

Um dia desses, conversando com ela, relatei a história, e percebi o júbilo em seu olhar. Era seu objetivo: que lembrássemos, que soubéssemos para o resto da vida o que era, na real, ver papai ir embora e nunca mais voltar.

Temos medo da morte porque a modernidade seqüestrou-a de nós. Hoje todos morrem em hospitais, cujo karma é pesado demais. Mas eu tive sorte. Eu pude, em outro episódio, me reconciliar com a idéia da morte como algo natural, como a passagem de um ciclo.

Eu devia ter uns quinze anos e mamãe nos avisa: minha avó (mãe do meu pai) estava muito doente, nas últimas. Fomos imediatamente para a casa dela, e lá estava a velhinha, sentada mas inconsciente, amparada por um médico. Mamãe sentou-se ao lado dela e pegou sua mão; minha avó teve um espasmo, não sei se involuntário ou porque sentiu a singeleza do toque.

Todos os parentes estavam na casa, chorando e rezando. Eu fiquei com eles, e aos poucos tudo fez sentido: a idade avançada da vovó, sua vida sofrida mas digna, seus filhos criados como pessoas de bem. Ela estava indo, mas tinha junto de si todos os que a amavam, na casa onde viveu décadas. Existe forma mais tranqüila de morrer?

Desde esse dia não tenho mais medo da morte.

Um bom dia de Finados a todos. E leiam esse post antigo, onde Sandman reflete sobre as mesmas coisas.

por Marcus Pessoa, às 06:34 -

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