9 de agosto de 2004
História romanesca
Não dava para não citar a história contada por Elio Gaspari neste domingo, sobre o conde Maurice Haritoff e suas duas esposas. Como o texto só ficará no ar até a terça dia 10 no site do Globo Online, vou publicá-lo na íntegra aqui:* * * * *
O conde Haritoff, a rica Nicota e a negra Regina
Morreu no dia 25 de junho, na Santa Casa de Barra do Piraí, Iwann Haritoff. Tinha 92 anos, não deixou um centavo e levou consigo o testemunho de um curioso episódio da vulnerabilidade daquilo que se gosta de chamar de elite brasileira e da beleza da vida nesta terra.
Iwann foi filho do conde russo Maurice Haritoff, um dos rapazes dourados da corte de Napoleão III em Paris. O conde veio ao Brasil em 1866 acompanhando uma irmã que se casara na aristocracia cafeeira do Vale do Paraíba. No ano seguinte Maurice Haritoff casou-se com a sobrinha do comendador Joaquim de Souza Breves, que foi o homem mais rico do Brasil de todos os tempos. Juntou 52 fazendas e mais de cinco mil escravos. Haritoff tinha 25 anos e Ana Clara (Nicota), sua mulher, 17. Conversavam em francês.
Quando estourou a Guerra da Criméia, Haritoff alistou-se nas tropas russas. Retornou trazendo para a mulher um magnífico xale para noites de gala. O casal encantou o grão duque Alexandre em sua passagem pelo Brasil. O palácio em que viviam em Laranjeiras (no terreno onde hoje funciona a Escola José de Alencar) foi o salão da imperial granfinagem. Suas portas abriam-se às terças-feiras (“le Mardi de Mme. Haritoff”). Vestiam os criados como cossacos.
Maurice e Ana Clara não tiveram filhos. Ela morreu em 1894, aos 44 anos. Viveram aquilo que seria um conto de fadas europeu nos trópicos. A esse conto de fadas seguiu-se a História brasileira, bagunçada e bela.
Diz a lenda branca que Nicota morreu de desgosto, obrigada a conviver com o romance de Maurice com uma mucama. Precursora da Nega Fulô do poeta Jorge de Lima, a negra Regina nasceu escrava, em 1867.
Tendo sabido ser rico e conde, Haritoff soube empobrecer como um cavalheiro. Casou-se com Regina em 1906. Nessa época já tinham dois filhos: Boris e Alexis. Boris foi o único mulato pobre da nobreza russa. Existe uma fotografia de Regina com as duas crianças, usando um lindo vestido, provavelmente colhido no espólio de Nicota.
Iwann Haritoff sustentou-se como pequeno comerciante e biscateiro. Como um tio russo, perdia tudo nas cartas. Pouco falava da história de seu pai e chegava a duvidar de que fosse verdadeira. Enterraram-no em cova rasa, por não ter “parentes próximos”, apesar de o andar de cima nacional estar cheio de descendentes dos Breves.
Nascido na decadência do café, Iwann viveu o descaso que assombra o patrimônio histórico nacional. A Fazenda do Pinheiro, onde Ana Clara e Maurice Haritoff se conheceram, foi doada (repetindo, doada) ao governo federal. Hoje é vergonhosa ruína. A Universidade Federal Fluminense e o Ministério da Agricultura dividem a irresponsabilidade da destruição da casa-grande e das suas terras, invadidas por baixo por favelados e por cima por condomínios. A Igreja da Grama, onde os Breves planejaram descansar em criptas nobiliárquicas, foi saqueada. Levaram o sino, o assoalho e a escada do púlpito. Depois que a polícia varejou-a à procura de um corpo desaparecido (o da ricaça Dana de Teffé) os moradores foram transferidos para o cemitério de Barra do Piraí. A juventude do pedaço transformou a igreja num point sobrenatural. Dizem que Joaquim Breves anda por lá à noite, de japona. Há rapazes que se divertem deitando-se no jazigo do comendador.
Os ícones da Santa Rússia e os orixás do Vale do Paraíba imploram ao poeta Affonso Romano de Sant’ Anna que não abandone a história do conde Haritoff e suas duas mulheres. Explica-se: ele se interessou pela história e já acumula algumas dezenas de fotografias, cartas e documentos relacionados com a vida de Maurice, Nicota e Regina. Ainda não se comprometeu a escrever sobre o assunto. Trata-se de um caso raro de samba-enredo que nasceu pronto.
Enquanto o livro do poeta (ou o samba-enredo) não vem, deve-se ao advogado Aloysio Clemente Breves Beiler um persistente esforço de preservação da memória de sua família, mantendo um excelente sítio na internet. A história de Haritoff está neste endereço.
* * * * *
Essa história, embora verídica, parece tão romanesca, que me vieram à mente lembranças dos mestres russos de que eu gosto tanto: Dostoievski, Tolstoi, Turgueniev, etc.
Pode-se criticar muita coisa em Elio Gaspari, mas não dá pra negar que ele escreve narrativas deliciosas. Ainda não li os livros dele sobre a ditadura, mas desconfio que sejam o relato histórico mais bem escrito dos últimos tempos, pelo menos desde Chatô, do Fernando Morais.
PS: não pretendo explicar o sumiço de mais um mês (daria muito trabalho e seria inútil). Se a palavra "bipolar" faz sentido pra você, então não preciso dizer mais nada.
Update - O leitor Rômulo Marinho trouxe, na caixa de comentários, preciosas informações e/ou correções sobre o texto acima. Publiquei-as em um outro post aqui do Velho.
por Marcus Pessoa, às 01:00 -