Velho do Farol

Porque sim.

Velho do Farol

25 de julho de 2007

Um gênio anônimo

O Sergio Leo ajudou a preencher uma parte do meu dia ontem, quando linkou esta linda matéria produzida pelo Washington Post e publicada pela revista Piauí com o nome "Pérolas aos poucos". Não consegui tirá-la da cabeça depois.

Joshua Bell"Produzida" é o termo correto, pois o jornal criou a notícia. Convidou o maior violinista da atualidade, Joshua Bell (foto), para empunhar seu violino Stradivarius de 1713 e tocar suas peças preferidas, icógnito, numa estação de metrô de Washington, a troco das moedas depositados pelos passantes.

A partir da reação do público, o autor faz interessantes reflexões sobre a "autenticação oficial" da grande arte junto ao público, a propensão das pessoas a novas experiências, o aprendizado da indiferença, etc. Leiam lá; são 8 páginas que valem a pena.

Uma catedral musical

A música que Bell escolheu para abrir e fechar sua performance, o quinto movimento (Ciacona, ou Chaconne) da Partita nº 2 em Ré Menor de J. S. Bach, é considerada uma das peças mais importantes da história, e a mais complexa e imponente partitura já escrita para um instrumento solo.

Você pode ouvi-la abaixo, na interpretação de Salvatore Accardo, gravada em 1976 (15:19 min).


(não é possível ouvir pelo feed)

Minha relação com a música erudita é a de mero curioso. Vou a concertos, mas não sei identificar a importância de uma música; só sei dizer se gosto ou não. E é inegável que esta peça de Bach é muito bonita. Muito pungente; um tanto triste, lamentosa, mas um lamento altivo e solene.

Contemplação

Se eu visse um violinista de rua tocando tão bem, provavelmente pararia para assistir. Por isso, me permiti discordar de nossa maior referência em música erudita na blogolândia, Milton Ribeiro. Ele acha que o número de aficcionados em música erudita é tão pequeno que Bell seria ignorado em qualquer lugar do mundo.

Eu penso que a matéria do Post diz mais sobre o ritmo trepidante da vida moderna do que sobre a cultura do povo e seus conhecimentos sobre grande arte. E acho que esta pode sim se comunicar com o público não-iniciado, se ele tiver a oportunidade de assumir uma postura contemplativa.

Quando digo que pararia para assistir, não estou falando de uma hipotético usuário do metrô de Washington, mas de mim, Marcus Pessoa, que moro numa cidade sem metrô e sem músicos de rua, e tenho o hábito de sempre andar devagar e contemplando as coisas, inclusive a arquitetura barroca de minha própria cidade, como se fosse turista.

Uma das entrevistadas pelo Post, a engraxate Edna Souza, disse que se Bell tocasse na rua, no Brasil, todo mundo pararia. Eu tenho certeza que se fosse em Belém parariam mesmo, ao menos pelo inusitado da coisa. Bem diferente é pensar num habitante da uma metrópole, passando por mais um entre tantos músicos de rua, na entrada de uma agitada estação de metrô.

Toda vez que vou a São Paulo me espanto com as pessoas andando sempre apressadas, sem olhar para os lados. Não dá pra explicar só pelas distâncias e jornadas de trabalho esdrúxulas; é um estado de espírito mesmo.

O repórter do Post nos confirma o que já sabemos desde Saint-Exupéry: as crianças são as únicas que olham para os lados, que se interessam pela paisagem e o que ela tem a oferecer.

Elas não precisam conhecer a grande arte para se maravilhar com ela. Se as grandes cidades fossem espaços menos inóspitos, os adultos talvez pudessem sair de vez em quando de sua matrix particular e ser tocados por esse mesmo maravilhamento.

por Marcus Pessoa, às 14:25 -

23 de julho de 2007

Gramática

Eu escrevo muito (não aqui no blog, hehehe), e procuro sempre fazê-lo da forma mais correta possível. Mas às vezes eu ignoro algumas regras gramaticais.

Não é porque eu não as conheça ou tenha me enganado na hora. É proposital mesmo, por uma questão de estilo: às vezes o texto fica mais bonito ao transgredir.

Um exemplo é essa proibição de uso da próclise no início da frase, que eu nunca entendi por que existe. Eu escrevo na boa a frase "Me incomoda o gesto do Marco Aurélio Garcia". A regra diz que eu devia escrever "Incomoda-me o gesto", mas eu acho essa construção um tanto castiça, pouco natural, e sem muito a ver com o falar tipicamente brasileiro. É o caso em que a prática do povo suplanta os manuais.

Outra coisa que é proibida e eu faço o tempo todo é misturar os pronomes de segunda e terceira pessoa -- a velha confusão entre "tu" e "você", que querem dizer a mesma coisa mas têm regras diferentes. Dependendo da frase, pode ficar mais bonito o pronome da segunda ou da terceira pessoa. Se as frases estão no mesmo texto, paciência, estupro a gramática e sigo em frente.

por Marcus Pessoa, às 07:12 -

20 de julho de 2007

Urubus II - a missão

Não são apenas os spin doctors da oposição que só pensam "naquilo". O assessor para assuntos internacionais da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, fez gestos obscenos quando o Jornal Nacional divulgou, na edição de ontem, que o Airbus da TAM que se acidentou em Congonhas teve diagnosticado um defeito há alguns dias. Veja o vídeo.


Link para o vídeo

Não é a primeira vez que gente do primeiro escalão do governo se comporta como se estivesse no boteco da esquina, e não no comando no país. É o equivalente político-partidário de um são-paulino bêbado gritando "se fudeu corintiano", após mais uma derrota do time de São Jorge.

A notícia sobre o defeito e o estranhíssimo comportamento do avião captado pelas câmeras da Infraero enfraquecem a hipótese de problemas na pista. Marco Aurélio achou que isso era motivo para comemorar.

É que nem o slogan do filme Aliens x Predador. "Não importa quem ganhe, nós perdemos".

por Marcus Pessoa, às 01:03 -

19 de julho de 2007

Eles só pensam naquilo

Notinha de hoje no blog de Reinaldo Azevedo:

O que dá pra saber desde já é que a tragédia ceifou 192 vidas e, com certeza, uma carreira política: a de Marta Suplicy, ministra do Turismo. Acho que não há retorno eleitoral para ela. Não para cargo executivo. O PT pode tratar de pensar num outro nome para disputar a Prefeitura de São Paulo e, mais adiante, o governo do estado.

Mais didático impossível, né? O interesse de Reinaldo Azevedo e da oposição é exclusivamente os prejuízos político-eleitorais que a tragédia da TAM possa gerar ao governo.

Na minha terra isso se chama "urubu na carniça".

Mais urubus: senti vergonha alheia dos jornalistas que foram obrigados a editar, na edição de ontem do Jornal Nacional, uma matéria que desrespeita o sofrimento dos parentes das vítimas, mostrando longamente e com detalhes os momentos de choro e desespero destes ao receber a confirmação da morte de entes queridos.

O direito de todos a um pouco de privacidade na hora da dor não vale nada quando se trata de promover sensacionalismo.

Liminar: a Leila questiona em seu blog e na caixa de comentários do post anterior sobre a ação do Ministério Público pedindo a interdição da pista de Congonhas. Chegou a haver uma liminar, que foi derrubada logo em seguida.

Mas a ação é anterior à reforma, que foi feita para corrigir os problemas bem conhecidos sobre a pista. Houve várias derrapagens no ano passado.

Por algum motivo que desconheço (embora desconfie), os indignacionistas sequer mencionam que houve uma reforma, ou seja, que a Infraero não ficou parada e agiu para melhorar a segurança do aeroporto.

Comodidade: o André, como sempre, fazendo um comentário muito sensato:

A minha humilde opinião é que o aeroporto de Congonhas deveria ser fechado, mas a verdade é que quase ninguém que viaja de e para São Paulo quer isso. Todo mundo quer comodidade. Ninguém quer andar 40 Km para chegar no aeroporto. O que o pessoal quer é sair do vôo e já estar quase em casa, em Moema, Campo Belo e outros.

por Marcus Pessoa, às 12:43 -

18 de julho de 2007

Mães Dinah da segurança de vôo

Este blog, que em breve estará se mudando para um provedor neutro em emissões de carbono, apóia a luta contra o aquecimento global, e por extensão condena todo o gasto inútil de energia, incluindo os posts ociosos, especulativos e desinformados da blogolândia brasileira sobre o trágico acidente da TAM.

Como eu disse ao Inagaki, nessa hora surgem milhares de especialistas em segurança de vôo. Todo mundo agora sabe o que é grooving e enche a boca para dizer que a falta das ranhuras na pista foi uma das causas do acidente.

[update] Eu não estou dizendo que o Ina fez um post desinformado ou ocioso. Divirjo dele, e (pra variar) já provoquei um atrito hoje, mas o linkei porque o respeito e pra ele dá vontade de responder. Os indignacionistas de verdade, que apenas psicografam sua desordem de pensamentos do momento, eu leio o primeiro parágrafo e descarto. [/update]

Será que essas pessoas sabem que a pista de Congonhas nunca teve grooving? E que funcionou por décadas dessa forma, sem acidentes deste porte?

A pista tinha problemas sérios, e eles foram objeto de uma reportagem de Luiz Carlos Azenha no Jornal Nacional, relatada ontem em seu blog. A engenheira e pesquisadora Marcia Aps mostrou que a pista não seguia os padrões internacionais de segurança.

Por causa disso, houve uma reforma, auditada pelo próprio IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) onde trabalha a pesquisadora, cuja tese de doutorado é sobre... aderência de pneus em pistas de aeroportos...

A lógica indica que a pista está melhor agora do que antes. É até possível que não esteja, mas isso só saberemos depois da investigação. Só o complexo de vira-lata do brasileiro é que explica essa desconfiança atávica contra os nossos melhores especialistas e a crença de que "nada pode mesmo dar certo aqui".

Meu irmão já leu um relatório sobre um pequeno acidente aéreo aqui no Pará, há alguns anos, e me informa, impressionado, sobre a riqueza de detalhes da investigação, a cargo da Aeronáutica. Além das dezenas de páginas de questões técnicas, a comissão responsável investigou até a situação familiar do piloto, e um possível stress que pudesse ter interferido em sua performance.

Temos especialistas que trabalham a sério sobre causas de acidentes, e eles vão dizer, afinal, os motivos dos tristes fatos de ontem. Eu prefiro aguardar a palavra dos experts. Leigos e curiosos eu faço questão de ignorar.

Pode-se discutir, é claro, a conveniência da manutenção de tanto movimento aéreo em Congonhas, cujas condições de segurança são aceitáveis para os padrões internacionais, mas não ideais.

Mas sem dedo na cara dos outros, por favor. Vamos deixar de hipocrisia. "Segurança absoluta" non ecziste. Compatibilizar as questões de segurança com outras (financeiras e de operacionalidade) é uma decisão racional que tomamos todos os dias. Quem nunca comprou um carro sem air bag e freios ABS que atire a primeira pedra.

O que eu acho mais interessante é falaram em "tragédia anunciada". Anunciada por quem, exatamente? Eu não vi nenhum dos que falam em tragédia anunciada, a terem anunciado antes! Cadê os posts, matérias e artigos indignados, falando sobre uma suposta inviabilidade de Congonhas, anteriores à tragédia?

Isso me lembra da Mãe Dinah. Ela se notabilizou por fazer previsões que eram anunciadas sempre depois que o evento previsto se realizava. Blogueiros e palpiteiros profissionais de jornal são hoje as Mães Dinah da segurança de vôo: sabiam tudo o que ia acontecer, mas só falaram sobre isso depois do fato consumado.

por Marcus Pessoa, às 16:53 -

17 de julho de 2007

Em busca da cidade perdida

Este post não foi escrito por mim, mas por Neil Gaiman, um dos maiores autores de quadrinhos da atualidade. É uma história de Sandman, o mestre dos sonhos. Vou resumir a bizarra odisséia do sábio e magnânimo rei Haroun Al Raschid em algumas poucas imagens.


"Saiba então que este é um conto de Baghdad, a Cidade Celestial, a jóia das Arábias, e que aconteceu no tempo de Haroun Al Raschid, Rei dos Reis, Príncipe dos Fiéis".

O rei promove um grande reinado. Hospeda os maiores sábios e artistas de seu tempo, e acolhe cidadãos de todas as religiões do livro. Judeus e cristãos vivem em paz sob o seu jugo.


"Até mesmo seus filósofos admiravam-se da sagacidade de seus veredictos. Sob seu domínio, a cidade prosperou e toda a Arábia desabrochou e floresceu".

"Mas Haroun Al Raschid tinha a alma perturbada".

O rei conhece a finitude das coisas, e sabe que o destino de sua próspera capital é a destruição e o oblívio. Por isso, procura um conselho do sobrenatural, e acaba se deparando com o mestre dos sonhos em pessoa.


O rei faz uma oferta insólita, para salvar a si mesmo e à cidade que tanto ama.

"Proponho dar-lhe esta cidade. Minha cidade. Eu submeto à sua oferta. Leve-a para os sonhos. Em troca, eu quero não morrer jamais".

Sandman aceita a oferta, e o rei acorda no chão do mercado, longe de seu palácio. Um serviçal o acode e o está levando de volta, quando encontram um homem segurando um objeto bem estranho.


É o próprio Sandman, que não é reconhecido pelo rei. Ele lhe mostra uma garrafa com prédios dourados em miniatura.

"É uma cidade. Foi cedida a mim. E não está mais à venda".


Muitos séculos depois, um menino ouve a história de um velho, em troca de uma moeda. Quando este lhe pede outra moeda e o menino não tem, nega-se a contar o final.


"Assim, Hassan cambaleia para casa, escolhendo seu caminho através das áreas bombardeadas e as ruínas de Baghdad".


"Por trás de seus olhos estão as torres, as jóias, os djins, os tapetes, os anéis, os afreets, os reis, os príncipes e as cidades de bronze".

"E ele roga enquanto caminha, roga para Allah (que fez todas as coisas) pedindo que, em alguma parte, nas trevas dos sonhos, encontre-se a outra Baghdad (a que não pode morrer) e o outro ovo da Fênix".


"Allah sabe a resposta".

(esta história -- Sandman nº 50 -- foi escrita em 1991, durante o penúltimo estupro da grande cidade pelos cruzados modernos. Está mais atual do que nunca)

por Marcus Pessoa, às 06:29 -

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